''Ninguém quer aparecer em público dizendo que é machista. Ninguém vai falar que é a favor do feminicídio, das condições desiguais de emprego ou da violência contra a mulher. Mas isso não significa que você não esteja reproduzindo algum comportamento que se encaixa numa cadeia que termina numa dessas coisas.
(...) E nem mesmo cineastas que muito provavelmente jamais pensaram se ver metidos com uma coisa dessa de sexismo estão livres de reproduzirem uma ideologia que é, sim, machista.
(...) Era noite de sábado, 29 de agosto, quando a diretora Anna Muylaert entrou numa sala do Cinema da Fundação, no Recife, para debater com a plateia seu novo filme, 'Que Horas Ela Volta?', premiadíssimo, elogiadíssimo e candidatíssimo a representar o Brasil na tentativa de uma vaga no Oscar do ano que vem.
(...) Lírio Ferreira e Cláudio Assis (...) estavam ali para debater com Anna, mas um deles não teria deixado sequer que ela ocupasse uma cadeira no palco. Interromperam sua fala, ofenderam Regina e um maquiador, ironizaram a plateia.
(...) Prontamente, a Fundação Joaquim Nabuco prometeu uma resposta. E ela veio tão rápida quanto tacanha. Decidiu-se proibir os dois diretores pernambucanos e seus filmes de participarem da programação dos espaços culturais mantidos pela organização durante um ano.
(...) O primeiro problema de uma decisão assim é que ela faz pouco ou nada para remediar o ocorrido. O segundo é que joga para a plateia com uma artimanha ardilosa e irresistível para as turbas das redes sociais: o linchamento público.
Pouco importa a obra dos dois cineastas ou o crime que cometerem: a internet quer suas cabeças. Quer vingança. Quer sangue. É a lógica do patriarcado.
O terceiro é a noção, absurda para uma instituição cultural, de que o cinema é uma criação pessoal, e não coletiva. Porque, ao punir os diretores, toda a equipe que participou no desenvolvimento daquelas obras acabou sendo silenciada também. Isso para não falar no público, impedido de ter acesso a essas obras.
(...) Por que não aproveitar a oportunidade para realizar alguma ação formativa e, especialmente, positiva sobre a igualdade de gênero? Por que não chamar, por exemplo, produtoras, atrizes, roteiristas e diretoras para formar um grande ciclo de exibição e debates em torno da presença de mulheres no cinema nacional?''